sábado, 20 de fevereiro de 2010

Desventuras em Série

Era o último dia das férias. Na noite anterior eu tinha traçado uma rota nova, especial. Passaríamos pela primeira vez, sobre duas rodas, no distrito do Morumbi. Era mais um giga-rolê pela cidade de São Paulo. Marquei para o Croquete (Rafael) aparecer aqui em casa em torno do meio dia. Até aí tudo certo.

Antes de ele chegar, fui conferir a previsão do tempo na internet. Dizia que a manhã seria de sol, a tarde ia cair uma garoa e à noite choveria forte. O céu estava querendo ficar nublado, mas eu não dei importância. Tempo ruim não é desculpa para acabar com os planos ciclísticos. Então o Croks chegou. Comemos uns salgados que minha mãe tinha esquentado, para não morrer de fome no meio do passeio. Até aí eu já tinha arrumado a mochila com equipamentos de emergência e duas garrafas d’água. Mendiguei uns trocados e saímos.

Normalmente eu dava uma ‘esquentada’ na minha rua, dando uns pulos aqui e ali para ver se o piloto ainda tinha jeito. Dessa vez a mochila deu um peso que me impediu de brincar. Mas isso não era nenhum empecilho. Aliás, não era nada perto da situação da outra bike, que não tinha o freio de trás (para dar mais emoção). Pegamos a Inajar inteira bem rápido, a ciclovia estava quase vazia (pelo menos não tinha linha de pipa e muito menos sentinelas da Zona Noroeste).

Antes de atravessar a Ponte da Freguesia do Ó, recarregamos as garrafas d’água num posto próximo ao hipermercado. O dia parecia ótimo, o céu estava abrindo e não havia aquele calor sufocante. Pegamos o caminho da ponte e adentramos a Zona Oeste.

Geralmente, quando íamos ao Parque do Ibirapuera, pegávamos um atalho por uma escadaria atrás da estação Água Branca de trem. Já que o Croks não queria de jeito nenhum subir aquilo tudo e descer do outro lado do distrito, seguimos a Avenida Marquês de São Vicente até o viaduto Antártica.

Por sorte, o viaduto possui uma faixa de acostamento, facilitando a passagem das bicicletas. Saímos no estádio do Palmeiras, entre a Turiassú e a Sumaré. Dobramos a esquerda na Sumaré.

Durante a Avenida Sumaré, encontramos umas vacas feitas de alguma coisa reciclável. Era um tipo de arte que estava espalhada por diversos pontos da cidade. Prosseguindo, fomos fisgados pela subida traiçoeira da avenida. Não é uma subida escancarada, mas uma leve inclinação que aos poucos vai te arrancando o coro, sem você perceber que está subindo até o momento em que não restam mais forças para pedalar. Apesar disso, conseguimos subir até o final. Íamos passar a estação de metrô (Sumaré – Linha Verde), mas resolvemos seguir as placas que indicavam o Estádio do Pacaembu antes de chegar ao Ibirapuera.

Subimos e descemos umas ruas estranhas, e alcançamos enfim o estádio. Na volta paramos em uma estátua na Consolação, para refletir um pouco. Descemos a Doutor Arnaldo e voltamos para a estação Sumaré. Passamos o viaduto e entramos em Pinheiros.

Dobramos a esquerda no cemitério e entramos na Henrique Schaumann, seguindo em linha reta para a Avenida Brasil (distrito do Jardim Paulista – o mais nobre de São Paulo). Em pouco tempo avistamos o parque.

Demoramos certa de duas horas para fazer algo que fazíamos em quarenta minutos. As pessoas vão ficando velhas, e acontecem essas barbaridades... Então, enquanto dávamos uma volta pela ciclovia do parque, aconteceu uma série de eventos desventurados.

Cai a chuva. Corremos desesperadamente em busca da Marquise (um imenso lugar coberto com chão liso para treinar manobras e esportes gringos) e nada. Então fizemos algo que muitos estavam fazendo: nos escondemos em baixo de uma árvore.

Aquele era apenas o começo da brincadeira. Começava a bater um vento forte. Dava a impressão de que estávamos no meio de um tufão. Então eis que eu abro o bolso menor da mochila e encontro meu guarda-chuva. Ficamos estabilizados no pouco espaço em que não caía água: nossas cabeças. Em meia hora a chuva começou a parar. Corremos ao banheiro mais próximo e torcemos as roupas. Por sorte eu tinha trazido a corrente para prender as bikes lá fora.

Depois de um tempo passado no banheiro, sentamos em um banco para refletir o que fazer. Eu estendi o mapa na mesinha de pedra e arrastei meu indicador pelo caminho que tinha planejado, e parecia que a animação para o seguimento da rota voltara. Antes de sair e continuar a aventura, paramos para rachar um Beirute numa lanchonete do parque.

As nuvens tinham sumido parcialmente. Foi um estímulo para prosseguir a viagem. Contornamos o parque até uns cilindros de concreto coloridos. Saímos no fim do túnel Ayrton Senna. Paramos para conferir o caminho no mapa. Então um motoqueiro, aparentemente entregador de pizza, começou a se aproximar a gente, devagarzinho e pela contra mão. Eu guardei o mapa e esperei o cara parar, na calçada, e pedir a informação que queria.

“Iai, beleza?” perguntou o Croquete, já pensando em dizer que não era da região e não sabia informar nada. O motoqueiro, um homem alto, trajando um colete e calças de couro, branco e consideravelmente acima do peso, respondeu: “Não. Vai passando os celulares aí”.

Ficamos pasmos, sem entender aquela reviravolta na situação. Não dava para acreditar que aquele homem realmente tivesse dito aquilo. Demorou um tempo para processar tudo, e eu lutei muito para não cair na risada. Já havia rachado o bico durante a tempestade, e na hora de me secar no banheiro, e em todos os outros momentos hilários que ainda estavam por vir.

“O meu é velho...” retrucou Croquete, mas ele insistiu em pegar o de nós dois. Eu me enrolei na hora de guardar o mapa e não pensei em pegar o celular do Croks, enquanto ele falava para o assaltante “Dá logo a mochila!”

Torci para que o homem não desse ouvidos àquela afirmação. Porra, dar o celular tudo bem, agora entregar tudo sem que o assaltante tenha pedido seria sacanagem. Por sorte ele ignorou e disse que só queria os celulares mesmo. E ainda pediu dinheiro, mas dissemos que não tínhamos trazido carteira.

A sensação de perder o celular é como se eu tivesse que engolir um comprimido que entala na garganta. Até perguntei se podia tirar o chip, mas ele disse que não. Parecia bem desesperado. Afinal, o que faria com um chip sem crédito e em breve desativado?

Não dava para arriscar uma fuga ou resistência. Afinal, ele estava de moto e com uma mão dentro do bolso da jaqueta. Vai que dali saísse uma arma. E eu não estava afim de perguntar se ele a tinha ou não. Entregamos os celulares, e ele disse a frase que perfurou nosso espírito aventureiro e explorador:

“Agora VOLTEM e não olhem para trás.” E foi sumindo na direção pelo qual íamos explorar, se aquilo não tivesse acontecido.

Ficamos olhando ele sumir de vista. Ele foi indo e indo... E a gente ali, parado. Inconformados, boquiabertos, decepcionados. Ficamos inertes, apenas refletindo. Comecei a rir. Não dava para acreditar. Fomos roubados, e, pior de tudo, o rolê tinha acabado ali! Não havia mais aquela vontade, aquele ímpeto prazeroso por conhecer novos lugares. Acabara a emoção. Isso era pior do que qualquer objeto que aquele entregador de pizza charlatão poderia ter nos tirado. Perdemos a emoção, a adrenalina, a diversão.

Voltamos ao Ibirapuera, ainda pasmos e rindo muito. Num orelhão perto do portão oito do parque, ligamos para nossos respectivos pais, alegando que tínhamos sido roubados e que fizessem o favor de cancelar os números. Depois, partimos pelo mesmo caminho em que viemos.

De volta à Sumaré, o céu volta a ficar preto. Estávamos quase acabando de descer a avenida, quando cai a tempestade novamente. Eu até tentei continuar, mas não estava afim de enfrentar outra chuveirada com ventania. Então entramos de baixo da cobertura de uma concessionária. Sentamos nos degraus da entrada, e assim ficamos por um longo tempo.

Ao invés de parar, a chuva foi formando uma poça na calçada da Sumaré. E, em pouco tempo, já não havia mais calçada. Conforme os carros passavam, pequenas ondas vinham e quase chegavam a nossos pés. A correnteza engoliu a primeira faixa da avenida, e logo a segunda também foi bloqueada.

Alguns carros chegaram a subir na ciclovia no meio da avenida, e ali ficaram. Então parou de passar carro no outro lado da avenida, e o transito parou no nosso sentido. Sem celular, sem orelhão e sem caneta para resolver uns caça palavras, ficamos apenas olhando e esperando. O tempo passava, e já não tinha nada me minha mochila para mexer (só equipamentos de bicicleta e meu alicate multiuso que eu ganhei de natal).

Tirei umas fotos e gravei uns vídeos (em especial do corpo de bombeiros passando na contra mão). Depois de uma cota de espera, a chuva deu uma trégua e o nível da água abaixou. Era o momento perfeito para partir.

Em pouco tempo chegamos ao estádio do Palmeiras. A idéia era pegar a ponte da Pompéia, mas a rua Turiassú (que dava acesso) estava coberta por água até o teto dos carros. Era impossível passar para o outro lado. Pegamos o viaduto Antártica.

O trânsito estava completamente e irremediavelmente paralisado. Desde a Sumaré até onde a vista alcançava. No alto do viaduto, vários ônibus estavam desligados, e os motoristas conversavam entre si, perguntando a razão daquele inferno.

Lá em baixo, do outro lado, a Marquês de São Vicente era um verdadeiro rio. No meio da rua, as pessoas passavam em silêncio e de cabeça baixa, xingando sempre que possível o carro ou caminhão que jogava água em todo mundo.

Pegamos uma brecha na procissão, e conseguimos entrar na Marquês. Pedalamos pela correnteza até um ponto próximo ao trevo da ponte Julho de Mesquita Neto. Passamos o trevo e, depois de cinco minutos paramos. A pista à frente estava totalmente alagada, a não ser pelo ponto de ônibus suspenso no centro dela. Tivemos que pegar a Marginal Tietê por umas quebradas estranhas.

Anoiteceu. A calçada da Marginal Tietê não é um lugar apropriado para passar. A grama é alta, sem contar os buracos e cacos de vidro. Na hora eu imaginei a cena: imagina a situação dos pais de alguém que sai para andar de bicicleta, liga avisando que roubaram o celular, cai uma chuva do capeta, anoitece e eles ainda estão na rua.

Pensando nisso e preocupados com a situação familiar, paramos num posto para tomarmos um café expresso e usar o banheiro. Meia hora depois chegamos enfim na ponte da Freguesia. Ainda caía uma chuvinha chata, mas nada que nos afetasse depois das tempestades e alagamentos e assaltos pelo caminho.

Apesar de cansados, ainda havia aquele ânimo e a incredulidade por tudo que tinha acontecido. A ciclovia da Inajar não durou muito e, no final, tinha algo pegando fogo em um dos poços do córrego. Corremos para o outro lado da avenida (afinal, tem gás encanado de onde a fumaça subia).

Passamos a placa de boas vindas da Vila Nova Cachoeirinha e finalmente chegamos em casa. Mais um passeio realizado para encerrar as férias com chave de ouro, marcando para sempre o dia 17 de fevereiro de 2010. Tudo ocorreu perfeitamente bem, sem pneus furados nem dedos quebrados. Foi a primeira aventura de muitas que inauguraram a década de 10. ;D


Fotos do Estrago:

(ciclovia do Ibirapuera)


(torres estranhas perto do final do túnel Ayrton Senna - Moema)

(avenida Sumaré meio cheia)


(Avenida Marquês de São Vicente depois da garoa)

3 comentários:

  1. Parabéns pela aventura, o importante é viver a vida.
    Flw

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  2. Aee Aleh, continue com suas aventuras, parabens cara

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  3. Ai, menino.. só você mesmo! Só quero ver quando vem pra minha cidade! \o/

    Boa sorte, nas próximas aventuras..!

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